Memórias Clandestinas, histórias não contadas

Vitória Azevedo da Fonseca

 

Muito do que conhecemos sobre o passado, seja ele regional nacional ou mundial, conhecemos porque foram narradas historias a seu respeito e, de alguma maneira divulgadas para que pudéssemos conhecê-las. Nesse processo de criação de memórias, muitas histórias são repetidas ao longo dos anos, e muitas outras histórias sequer são conhecidas, seja porque não foram escritas ou não foram difundidas.
No que diz respeito à história recente brasileira dos últimos sessenta anos  ainda há muito o que ser contado, analisado e refletido. O documentário Memórias Clandestinas, de Maria Thereza Azevedo, contribui com esse processo de dar visibilidade às histórias não narradas.
Alexina Crespo, uma senhora que passa dos seus oitenta anos, mora em Recife, Pernambuco, tem uma vida comum. Tem filhos, netos e bisnetos. Quem a vê andando pelas ruas não imagina a história invisível e as experiências de vida que carrega em suas memórias.
O documentário Memórias Clandestinas tem o mérito de dar visibilidade a essa personagem nos palcos da história brasileira. O filme não conta “toda” sua história, pois isso seria impossível, mas chama a atenção para a experiência dessa simples mulher que conheceu Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tse Tung, dentre muitos outros.
Alexina Crespo, casada com o advogado e deputado Francisco Julião, foi convocada pela situação na qual estava inserida a tomar atitudes relacionadas às injustiças sociais, principalmente no que diz respeito à situação desumana vivida pelos camponeses que conheceu. Ela se envolveu em movimentos de transformação social, optou pela luta armada como meio para essa transformação. Participou de treinamentos guerrilheiros e participou de planos para uma revolução.
Depois de muitas batalhas e no desenrolar da guerra, foi também convocada a sobreviver e proteger sua família numa época de radicalidades. Hoje, passados muitos anos, Alexina Crespo, no seu dizer modesto afirma: “eu não fiz nada. Fiz apenas o que tinha que fazer”. Mas, quem não conhece sua história não entende o que significa “não ter feito nada”.
Alexina Crespo deixou um legado de solidariedade, humildade, garra, e, principalmente, um ponto de união de uma família que cresceu, e hoje ela tem netos e bisnetos. Além de sua atuação política, Alexina foi uma grande mãe, protegendo seus filhos e descendentes da violência do mundo em que viviam. Protegendo sua família das situações mais arriscadas pelas quais passaram.
Depois de anos de instabilidade, exílio e ameaças de morte, a família voltou ao Brasil em 1979 e continuou a guerra pela vida depois de tantas batalhas.
O documentário Memórias Clandestinas toma como ponto de partida a antiga casa, já destruída pelo tempo, onde os filhos de Alexina, crianças, brincaram e onde começou o contato com os camponeses. As memórias da família vêm à tona na casa do presente, onde foram reunidos os filhos, netos e bisnetos para a experiência de narrar e registrar essas memórias, num dia de domingo.
Na medida em que o dia passa e as histórias emergem, os temas vão sendo tratados por outros depoentes sejam sociólogos, jornalistas e amigos que contribuem para dar mais vida e uma dimensão mais ampla a uma história pessoal/familiar que não termina numa experiência particular, mas ecoa na história social brasileira dos últimos 50 anos.
Apesar da dureza do tema, das dificuldades enfrentadas, Alexina Crespo e sua família mantêm a alegria de viver. E o filme mantém o mesmo tom. O passado, mesmo dolorido e difícil, não deve ser objeto de apego e dor. Não se pode viver eternamente à sombra de um passado traumático. É preciso fazer um trabalho de superação que possibilite a continuidade da vida, apesar do passado. Alexina nos ensina isso. A vida continua, e as batalhas também.
Alexina Crespo é mais uma personagem que deve ser considerada no palco da história. E o documentário Memórias Clandestinas contribui como um pioneiro ao dar visibilidade a ela.


Por Vitória Azevedo da Fonseca – historiadora e produtora audiovisual
http://www.historiasnodocomcinemas.blogspot.com/